As Santas Casas de Misericórdia foram obras das Irmandades de Misericórdia. 
As obras de Misericórdia, numa afirmação simplificada, dirigiam-se aos pobres. Aos pobres de fazenda, de espírito, de saúde, de desventura. 
Assim foi, em geral, entre nós, ao longo dos últimos cinco séculos. Mas cinco séculos é muito tempo. E o tempo muda as coisas.

Desde o Século XIX, o nosso mundo das Misericórdias conheceu uma fractura. A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, passou a ter identidade diferente das demais. Os seus órgãos sociais deixaram de provir da Irmandade da Misericórdia de Lisboa e passaram a ser nomeados pelo Reino e depois pelo Estado.
Mesmo assim, manteve os propósitos de acudir aos pobres.

Do outro lado, ficaram cerca de 400 Misericórdias fiéis ao seu espírito e formato originais.

Desde então, nunca ficou assumido que a SCML era estatal. Como também não ficou assumido o contrário.

A intenção inicial era boa: a presença do Estado não alteraria os fundamentos e objectivos da Santa Casa. Continuava voltada para os pobres.

Mas a presença do Estado nunca é inócua.

Nem tal seria exigível. Estado é Estado e o Estado, a cada momento, tem um rosto diferente.

Que me lembre, a primeira manifestação desta influência, ocorreu quando era Provedor o Dr. Mello e Castro. Com a criação do Totobola e a afectação da sua receita à construção, em Lisboa, do Centro Hospitalar de Reabilitação Física de Alcoitão, e no Porto, a unidade semelhante, na Prelada, a lacuna na rede de saúde nacional que existia neste domínio começou a ser colmatada.

E aqui nasce a primeira alteração ao espírito original das Misericórdias. O Alcoitão e a Prelada não se destinavam só aos pobres. Pobres, remediados e ricos que precisassem de reabilitação física encontravam ali a resposta.

Tirando tempos revolucionários do PREC, Alcoitão foi sempre uma unidade, um serviço, da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Ainda hoje é.

O PREC repercutiu-se nas 400 Misericórdias Portuguesas.

Numa primeira fase, o Estado quis absorvê-las, anulá-las e substituir-se a elas. A sua natureza de instituições canonicamente erectas era politicamente incorrecta face ao Estado Progressista e Laico, que iria prover à boa e suficiente qualidade de vida dos portugueses.

As Misericórdias, por exemplo, perderam assim, a favor do Estado, os seus Hospitais.

Mas as realidades do Ser Humano e as fragilidades do Estado, criaram um novo “politicamente correcto”.

E o Estado foi devolvendo, quer à SCML quer às outras Misericórdias, os hospitais nacionalizados, ao mesmo tempo que ia transferindo para o chamado “Terceiro Sector” as suas obrigações, na área da Acção Social.

Só que, as profundas mudanças entretanto ocorridas na nossa sociedade fizeram com que estas transferências não se limitassem a repor o “Status quo ante”.
A Sociedade mudou. As suas necessidades mudaram.

Agora, gente rica, remediada e pobre, precisa de cuidados que, em grande parte, eram encargos das Famílias. Cuidados continuados, paliativos, por exemplo, são tarefas já tão especializadas que as Famílias – ou o que resta delas – não pode garantir.

Por iniciativa própria ou transferência do Estado, são hoje as Misericórdias que principalmente superam esta lacuna, este vazio nos sonoros preceitos constitucionais.

Por um lado parece-me bem, pois tarefas tão delicadas como estas são melhor desempenhadas por quem mantém o espírito de Misericórdia original, do que pelos trabalhadores profissionalizados de um Estado laico.

Por outro, mercê da forte comparticipação financeira do Estado, as Misericórdias correm o risco de serem atiradas para a zona indefinida em que já hoje se encontra a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, dando lugar a um “Tersiumgenus”, que abrange pobres, remediados e ricos, afastando-se do seu espírito original. É uma evolução.

A questão que se põe às Misericórdias, todas elas, é esta:assistimos passivamente às alterações geradas pela conjuntura ou procuramos, nós católicos, comandar o processo e manter a matriz. É que, nós, Irmandades de Misericórdia, somos instituições canonicamente erectas e as contas que temos de prestar é a Alguém que está mais acima que o Estado.

Pedro P. Vasconcelos